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quarta-feira, março 30, 2005

wrong number 

Estava sentado à secretária. Tinha um ar desmazelado, o cabelo em desalinho. As mãos seguravam a cabeça que parecia cair de desespero ou, simplesmente, de todo aquele bourbon bebido. A garrafa estava nas últimas e ele também. Já não havia cigarros para fumar, só no largo cinzeiro de vidro, esborrachados. O casaco amarfanhado nas costas da cadeira. sam spade por rené magritte. E o telefone que não tocava. Nunca mais tocava.

De repente, ouviu-se o som. Triiim. Triiim. Levantou o auscultador, grunhiu qualquer coisa inaudível. Desligou. Pôs-se de pé e percorreu vagarosamente o caminho até à casa-de-banho. Olhou-se ao espelho, penteou-se, ajeitou a gravata. De volta à secretária, deu uma olhadela rápida à sinistra madrugada, através das persianas. Vestiu o casaco, colocou o chapéu na cabeça. Saiu. Fechou a porta. Era engano.

terça-feira, março 29, 2005

milagre 


Carl Th. Dreyer. Ordet. 1955.

segunda-feira, março 28, 2005

too pure 

No outro dia, fui acusado, por um tal de Carlos Paulo, de ser um purista. Estávamos em pleno Incógnito, ali como quem desce a Calçada do Combro. A princípio, refutei a acusação - que ideia, eu purista! Depois, quando dei por mim a pedir ao DJ que tocasse Joy Division sem aqueles efeitos esquisitos que tinham acompanhado «She's Lost Control», dei-me conta que sim, sou um purista. As músicas que eu gosto não devem ser alteradas, sob qualquer pretexto. Mesmo que fique bem. São intocáveis. Às outras podem fazer o que quiserem, que eu não me importo. Às «minhas», não. E sou eu que penso isto, eu que até tenho alguma afeição por remisturas, re-montagens e afins. Somos animais estranhos, de facto.

sexta-feira, março 25, 2005

capa 

«Não julgues o livro pela capa», ouço dizer. Tantos livros comprei e deixei de comprar por causa da capa. Quantas obras-primas não lerei. O aspecto da coisa, a forma torna-se, muitas vezes, tão ou mais importante que o conteúdo. E não é só a capa, se o tipo de letra não me agrada, ponho o livro de parte. Se a numeração das páginas é feia, a mesma coisa. A mais ínfima gralha deita tudo a perder. Podem parecer ninharias. Para mim, não são.

terça-feira, março 22, 2005

la piovra 

Gosto da violência nos filmes, nas séries de televisão. Gosto de filmes policiais, de filmes de gangsters, filmes de guerra. Até dos mais descabelados filmes de acção. Gosto da estética da violência que se encontra em Scorsese ou Tarantino. Das armas, das poses, do sangue. Por outro lado, dá-me um enorme prazer ler ou ver coisas sobre a máfia. Torço pelos «maus da fita» nos filmes, embora estes, para manter a ordem, acabem sempre castigados de uma forma ou de outra (Goodfellas, The Godfather). O estranho é que não suporto a violência quando ela é real. Sou daqueles que desvia os olhos ao acidente de trânsito ou à execução de prisioneiros que passa amiúde na televisão.

domingo, março 20, 2005

bresson 

O cinema de Robert Bresson é religioso em mais que um sentido. O silêncio que se pede na sala de cinema que passe um filme seu é o mesmo do de uma igreja.

sábado, março 19, 2005

le vent souffle où il veut 

"O Vento sopra onde quer e tu ouves a sua voz, mas não sabes de onde vem nem para onde vai. Assim acontece com todo aquele que nasceu do Espírito."
Evangelho segundo São João (3, 8)

quinta-feira, março 17, 2005

bitoque 

Sempre que me ausento da minha amada pátria, e por muito breve que seja essa ausência, sinto infalivelmente falta de algumas coisas que só ela nos pode dar. Não falo do futebol, das politiquices corriqueiras ou do eventual faduncho. Falo de coisas bem mais portuguesas, impossíveis de localizar fora do nosso magnífico país. Falo da bica, por exemplo. O drama da emigração transforma-se numa autêntica tragédia pelo facto de ninguém, que não seja português, ter a habilidade de tirar um café de uma máquina sem que este saiba a água de lavar pratos. O mesmo se passa com o bife frito. Não me lembro de uma única vez em que tenha comido carne saída de uma frigideira no estrangeiro. É científico, lá fora, só bife grelhado, ou assado, ou cozido, ou sei lá. Nunca frito. Por isso, sempre que regresso, lá vou eu enfiar-me sofregamente no balcão mais oportuno, de modo a provar a tão ansiada iguaria. Não pode ser num restaurante fino, nada disso. Tem que ser num lugar minimamente atascado, onde o bitoque não se possa comer sem uma imperial à frente. Onde o bitoque venha com um molho que faça tão mal à bendita saúde como saiba bem ao palato. E haja muito pão. Pão para molhar no molho, pão para molhar no ovo opulentamente estrelado. Só isto, vale o exílio e o posterior retorno à nossa Ítaca desgovernada.

quarta-feira, março 16, 2005

chamadas 

Na madrugada do passado domingo, de boleia no carro de um dos meus melhores amigos, meu irmão que não de sangue, cantei estes versos que sei de cor:

Watch out,
The world's behind you
There's always someone around you who will call
It's nothing at all

terça-feira, março 15, 2005

old boy 

No Blitz da semana passada, Jorge Mourinha referia-se a Old Boy como o típico mind-fuck. Eu, por outro lado, consigo pensar em muitos outros filmes mais mind-fuckers que este. Vertigo surge, logo, no topo da lista. E o desprezado Vanilla Sky (nunca percebi se era bom ou se só me fodia a cabeça). Lembro-me, também, de um filme espanhol, chamado A Arte de Morrer ou coisa parecida, responsável por uma noite de pesadelo em vigília. Vendo bem, quase todos os meus mind-fuckers são, tirando a óbvia excepção, filmes de merda. O que não é o caso desta fita coreana. É, antes, uma gloriosa história de amor, ou duas, ou mais - nada me demove da ideia de que raptor e raptado se vão enamorando um pelo outro, um pela história do outro. Claro que Old Boy tem cenas que enjoam os estômagos mais frágeis, como as saídas precoces da sala revelaram, mas servem tão-só o tom excessivo do filme, a sua aura de loucura. Fala-se aqui de amores incestuosos, anti-natura, amores que o tempo não apaga.

terça-feira, março 08, 2005

chelsea x barcelona 

Quem menoriza o jogo de futebol, perdeu hoje uma obra-prima. Duas grandes equipas, um estádio cheio, golos e um treinador de génio. A verdade é que o Barcelona mostrou ter jogadores melhores: Deco, Eto'o e o fora-de-série Ronaldinho. O gaúcho marcou um dos golos mais belos que vi na minha vida. Mas não chegou. O Chelsea não tem grandes estrelas, nem foras-de-série (tirando Ricardo Carvalho), tem bons jogadores, incansáveis, lutadores. E um treinador que sabe mais de futebol a dormir que os outros todos no auge do seu trabalho. Mourinho, sim, é um génio. Só ele podia ter derrotado o Barcelona que se viu em Stanford Bridge. Partiu de uma desvantagem, um rival que tinha melhores jogadores a jogar muito bem entre si e ganhou. Só ele.

segunda-feira, março 07, 2005

o anjo pornográfico 

É impossível ler Nelson Rodrigues sem um peso no coração. Nem mesmo na sua versão soft Suzanna Flag dos folhetins. Todas as suas histórias estão recheadas de crime, obsessão e morte. Ninguém escapa. Somos todos uns bons filhos-da-puta à procura de redenção, da pureza, do absoluto. Mas para lá chegar temos de chafurdar na merda, nos vícios, nos pecados. Só descendo muito baixo, batendo no fundo, podemos aspirar à salvação. Ler a prosa de Nelson Rodrigues (não estou a contar aqui com as crónicas) é um exercício de auto-punição. Um calvário que impomos a nós mesmos. Por exemplo, o romance O Casamento é de uma maceração cruel para os seus leitores. O mundo de Nelson Rodrigues, parecido com o nosso, é malsão, causa repulsa, mas, como tudo o que nos causa repulsa, atrai. É inescapável. Voltamos lá sempre, não desistimos, queremos ver o que vem a seguir, não perder pitada. Ler Nelson Rodrigues é moralmente necessário e perigoso.

quinta-feira, março 03, 2005

academia 

Com um delay de alguns dias, vou escrever sobre os óscares. Ontem, vi Million Dollar Baby. É um filme bem feito e tocante, longe porém dos píncaros de tragédia grega de Mystic River, para não ir mais atrás na filmografia de Clint Eastwood. Dos outros nomeados, não vi sequer um. Mais por intuição, posso dar os meus palpites. The Aviator é mais um pastelão a que Scorsese nos tem habituado desde Kundun, e o director de fotografia, pelo que pude perceber de algumas imagens, sofre, com certeza, de daltonismo em elevado grau (que cores são aquelas? Nem realistas, nem coisa nenhuma, feias e deslocadas). Sideways, a típica fita simpática, que fala de relações humanas e nos deixa sair da sala de cinema reconfortados connosco mesmo. Biografias assépticas de cantores negros e xaropadas fantasistas a tentar ser Tim Burton quase não merecem menção, quanto mais a possibilidade de ganharem prémios. Assim, a atribuição do óscar de melhor filme é justa. Este ano, não houve, como Lost in Translation em 2004, um filme que me despertasse uma paixão convincente. A haver, só o hitchcockiano La Mala Educación de Pedro Almodóvar. Estou-me a esquecer de The Brown Bunny, mas esse, então, está demasiado além do cinema e dos óscares para ser chamado a esta conversa.

Nota final: É notável e sintomático que a perfomance mais brilhante dos últimos tempos tenha passado em claro. Julia Roberts é fabulosa em Closer. Não teve direito a nomeação. É a cegueira daqueles que só vêem uma interpretação quando ela está completamente à mostra. Não há espaço para subtilezas.

quarta-feira, março 02, 2005

pietà 


Michelangelo Buonarotti. Basílica de São Pedro.

terça-feira, março 01, 2005

anti-che 

Não suporto o romantismo de Che. Odeio mártires compulsivos. Percebo o desgraçado que luta para melhorar a vida. O sujeito a quem nada falta e se imola na praça pública por uma causa nobre (quanto mais nobre, pior) dá-me vómitos. Venero aqueles que morrem ou enlouquecem por amor. Os que se drogam, mutilam, suicidam para não se lembrarem mais. O drama do indivíduo é infinitamente maior que o do colectivo.

política 

Estou farto, e com nenhum vagar, para as coisas que se dizem sobre política em Portugal. Quanto mais leio e ouço, mais me afundo numa estupidez parva. Tenho a sensação que os meus pensamentos desconchavados e teorias mal fundamentadas são muito mais inteligentes que 90% do que circula por aí. Claro que não o posso provar, mas, ainda assim, fico-me com esta.

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